“Um dia Ebrahim, o rei de uma gloriosa nação, foi em busca de seu mestre. Em sua busca, encontrou um mestre que lhe recebeu e lhe perguntou:
— Você está disposto a aceitar qualquer coisa?
E Ebrahim, o rei, prontamente respondeu
— Sim mestre! Eu vim para isto. Diga e eu farei!
O mestre olhou-o e disse:
— Está bem. Então tire suas roupas.
A ordem do mestre ressoou absurda aos seus discípulos: o mestre nunca lhes havia pedido isso. E todos ficaram receosos porque, afinal, Ebrahim, era um grande rei.
Ebrahim aceitou e começou a se despir na frente de todos. Um dos discípulos sussurrou no ouvido do mestre:
— Mestre, isso não é demais? Não seja tão rígido, o senhor nunca nos pediu isso...
Então o mestre, ainda dirigindo-se a Ebrahim, ordenou:
— Pois bem, agora pegue seus sapatos, segure-os nas mãos e saia pelas ruas da cidade batendo com eles acima de sua cabeça. Ande assim por toda a cidade!
Essa cidade era sua capital. Mas Ebrahim foi. Dizem que quando ele voltou, estava iluminado.”
~ Parábola retirada do livro ‘A Semente da Mostarda’, de Osho.
…
A arte de se sentir ridículo. Ah, como falar sobre ela?
Para não iniciados pode ser um pouco difícil, mas confio na minha capacidade de introduzi-los.
Pedir as coisas
Minha mãe sempre falou, quando eu era criança, para não ter vergonha de pedir as coisas. Desde as mais burocráticas às mais essenciais da vida. Desde outro talher que eu deixara cair estrionicamente no chão de um restaurante a uma ajuda na farmácia para entender a caligrafia do receituário médico escrito por uma letra à beira do ilegível.
E esse incentivo a não ter vergonha das coisas, sem ser, entretanto, um sem-vergonha ou desonesto, motivou muitas outras coisas positivas na minha vida. Eu não tenho medo de falar ao telefone, nem com recepcionista, ou com doutor, ou com policial, ou com mulheres (inclusive meu amor, que está lendo isso) e qualquer outra pessoa que seja.
Muitas coisas que as pessoas sentem vergonha alheia ao verem, inclusive, não me desperta nada. Nem um esboço da mais sutil reação. Isso porque no fundo eu vejo o quão infantis cada um de nós, pessoas, temos o potencial de sermos, se dado o devido espaço e conforto pra isso.
Parece que todo mundo às vezes quer só voltar a ser criança. E é por isso que as pessoas bebem, tiram fotos ridículas no celular guardadas numa galeria que ninguém vê, e gravam coisas estranhas, escrevem idiotices sentimentais...
O artista é um ser humano comum que percebe isso e supera a barreira que o separa de outros profissionais: o receio de se sentir ridículo.
Porque se sentir ridículo é uma arte. E essa arte eu admiro.
Mais do que escrever, filmar, gravar, pintar, registrar, a arte de sentir ridículo é um pré-requisito para que essas coisas todas aconteçam.
E sejam divulgadas.
Hoje, mais do que nunca, é essencial saber divulgar a própria arte para ela não morrer batendo nos portões de um palácio que não existe mais, implorando por um mecenas que já morreu.
(Ou pelo menos delegar esse trabalho para alguém que manje do assunto.)
Falar alto
Numa aula de teatro que eu fui sem saber que ia, o instrutor falou:
"PESSOAS RIDÍCULAS FALAM ALTO"
E num primeiro momento, aquilo poderia parecer um aviso para falarmos mais baixo e sermos um pouco mais polidos em nossos gestos e atos. No teatro, assim como na vida, porém, tanto mais se ganha quanto mais se é ridículo.
À vista de pessoas polidas, o falastrão e a falastrona impõem seu lugar no mundo. Estes, porém, fazem isso sem sequer perceber. Ou, sem dar a pinta de que o percebem:
Sprezzatura. Fazem algo complicado como se não fosse nada.
É complicado se sentir ridículo. Um idiota, um paspalho.
Mas muitas vezes temos de nos sentir assim para conseguir expressar qualquer coisa que seja. Sentimentos. Desejos. Ideias.
O mundo polido, pelo qual navegamos com nossas vestes profissionais, não está nem aí para nada disso. Nossa subjetividade é silenciada em cada atendimento ao público, cada relatório objetivamente redatado, cada aperto de mão breve como uma porta que se abre automaticamente ao passarmos por debaixo do sensor de mais um prédio corporativo, uma catraca, um guichê.
A frieza e a polidez não dão vez à avidez com que trocamos de sentimentos durante um dia, como trocamos olhares educados escondendo tudo isso.
É por isso que em nossos círculos de amigos mais próximos somos absolutamente ridículos. Baixo-nível. Completamente imbecis.
Os homens e as mulheres precisam desses momentos de imbecilidade tanto quanto precisam de água. O relaxamento das nossas barreiras sociais é como tirar das costas uma pesada mochila cheia de livros.
Tanto que a primeira coisa que percebemos ao sentir que não fazemos mais parte de um determinado grupo de amigos... é quando sentimos que não podemos mais ser ridículos perto deles. Que, por um motivo ou outro, temos de levantar nossa barreira porque o filtro do grupo não é mais o seu filtro.
E aí vamos embora, atrás das pessoas que nos recebem como achamos que realmente somos e podemos ser... abertamente ridículos e obsessivos, com tics compulsivos desde ortorexia a discussões políticas incessantes.
Perguntar
A questão é: não se pode ter paz quando se está o tempo todo tentando sustentar uma imagem. E por maiores que sejam nossos atributos, nossas competências, nossos dons, raramente essas coisas nos trazem paz. A paz reside em simplesmente aceitar que um vacilo, um passo em falso, uma vírgula errada pode lhe por tudo a perder. E se somos reis da nossa própria vida, ou de uma grande nação como Ebrahim era, podemos nós mesmos nos despir de tais vestes e sair pelas ruas da cidade batendo com os sapatos acima de nossa cabeça. Algumas pessoas ficarão desconfortáveis, mas saberemos, no fundo, que é preciso estar nu para estar em paz.
Saliente-se, contudo, que isso não é uma desculpa para a incompetência, o desleixo, a falta de escrúpulos com o próprio trabalho. Pelo contrário, creio eu que as maiores faltas são cometidas por pessoas que antes de as cometerem se sentiriam ridículas demais por perguntar
“como eu faço isso?”
Ok, não facemos perguntas que poderiam ser respondidas pelo Google, mas não deixemos de perguntar. Porque é preciso se deleitar na sensação de vergonha e assumir a própria ignorância, várias e várias vezes num único dia.
É preciso dominar a arte de se sentir ridículo.
Até semana que vem,
- Mauro
pqp, é por isso que sou tua fã bixo. Tu és foda!!!