Baseado em fatos reais.
Cap. 1 - abençoação
Estava Betilda e Cornélius a beira da praia, Cornélius sentado numa canga ao lado de sua garoa, e Betilda, sua garoa, deitada de frente ao mar, Cornélius aparentemente admirando suas deliciosas coxas e Betilda admirando os olhos de Cornélius refletindo a areia da praia em seu corpo.
Eis que se aproxima desse casal aparentemente apaixonado uma velha muito feia.
Essa velha, tão feia, vestia-se como uma bruxa. Suas roupas eram trapos pretos com um chapéu pontiagudo acobertando o couro de seus cabelos volumosos, secos e grisalhos. Seu nariz tinha uma pereba vermelha quase estourando e seus olhos eram negros como véu de viúva.
Essa velha carregava num cinto ao redor dos quadris um facão, daqueles que os vendedores ambulantes usavam para abrir coco, e na mão direita levava, de fato, um coco.
Como quem vinha das profundezas do mar e se arrastou até ali, sua roupa estava úmida, mas não molhada, e, mesmo olhando para o mar, o casal não a tinha visto. A velha apareceu quase que materializada na frente dos dois e, olhando no fundo dos olhos de Betilda, como se a conhecesse já de muito tempo, arreganhou sua bocarra lotada de dentes podres, espremeu sua garganta cheia de veias azuis pulsando por debaixo de desgastada pele, e falou uma frase que marcaria Betilda para sempre:
- MINHA FILHA... TU SERÁS A MAIS PRENHA DE TODAS AS VACAS.
O casal, aterrorizado, não pelo teor da mensagem e sim pela mensageira, petrificou-se. E antes que pudessem esboçar qualquer reação, a velha desenbanhou o facão que levava na cintura, segurou seu coco acima da cabeça de Betilda com suas mãos cadavéricas, aquele coco verde vivo, suculento, cheio de água, e tascou-lhe o facão.
O coco se partiu e toda a água despejou em cima de Betilda, molhando seus cabelos, cobrindo seus olhos em espanto, sua boca aberta pelo frio da água que escorria até o sutiã de seus melonáceos seios.
E assim, Betilda estava abençoada. Abençoada sua futura maternidade, pela velha parteira que seguiu para rumo desconhecido, enquanto o casal aparentemente apaixonado entreolhava-se, tentando entender o óbvio:
Betilda seria a mais prenha de todas as vacas.
Cap. 2 - O tabu do engenheiro
Anos se passaram daquele fatídico dia, soterrando a memória daquele fatídico acontecimento no imaginário mais inconsciente e obscuro do casal.
Cornélius agora já estava empregado num grande escritório de engenharia, enquanto Betilda continuava a cantar todos os domingos na igreja e a ser papagaiada por vários pretendentes que ainda não sabiam do seu status de relacionamento.
Cornélius e Betilda estavam noivos. E aparentemente muito bem noivados, pois Betilda estava tão grande quanto uma carreta e Cornélius tão gigante quanto uma caminhão pipa.
Aquele casal feliz tratava o acontecimento da praia de anos atrás como um grande tabu. Pois desde aquele incidente, faltou o narrador contar, a vida do casal prosseguiu assim:
Betilda, quando a água gelada do coco amornou e o susto passou, moveu-se para encontrar o paradeiro da velha. Percebendo que a velha havia desaparecido da face da terra, voltou ao seu futuro noivo e, tendo certeza de que aquilo fora um sinal divino de fartura maternal, espantou-lhe pela segunda vez dizendo:
- OUVIU ISSO AMOR??? EU SEREI A MAIS PRENHA, A MAIS PRENHA DE TODAS AS VACAS.
Mas Cornélius não estava horrorizado pela péssima escolha de palavras daquela profetiza do inferno. Cornélius estava horrorizado por um motivo que não conseguia ainda sequer balbuciar... então apenas forçou o sorriso mais pesado que poderia sustentar naquele momento e disse:
Ai minha garoazinha, que maravilhaaa!
E nunca mais Cornélius falou diretamente sobre o assunto. Enquanto Betilda, nos seus afazeres diários, pensava obcecadamente em estar prenha. Grávida, cheia de nenéns. Essa era a maior maravilha de graças que poderia receber. E foi dando várias indiretas para que Cornélius percebesse que estava preparando a vida dos dois para aconchegar essa profecia.
Falava sobre nomes de bebês, bebês homens, mulheres e hermafroditas. Contava sobre a Clotilde, a Nair e a Gaudinéia que tiveram 4, 5 e 6 filhos respectivamente nos últimos três anos. E ia sorrindo feliz a cada esquina que passavam juntos e encontravam uma criança.
Cornélius sorria junto, sugeria nomes, fazia piada com a fábrica de Gaudinéia, mas nada o abalava o suficiente para contar a verdade. E a verdade é que Cornélius era morto.
Morto de veado.
Betilda, também conhecida como "Beatilda" na igreja, nunca percebeu pois era também morta.
Morta de crente.
Quando saía na rua, todos a reconheciam pelo seu saião sem bordados, pela sua camisa sempre estampada e bastante amassada, e seu cheiro de criança remelenta.
E quando saía com Cornélius, ambos ficavam só nos beijinhos. Costumavam segurar as mãos quando ninguém no culto de Beatilda estava olhando. E para justificar o porquê de Cornélius ainda não ter se convertido, para frequentar suas canções e atividades assiduamente junto dela, falava que ele tinha síndrome do pânico, morria de medo de muita gente num mesmo lugar ao mesmo tempo (o que era verdade) e que o amor não escolhe razão, mas "bençãôs".
E Cornélius sabia que era veado? Tinha ele esse autoconhecimento todo?
É claro que tinha! Oras, se não tivesse, não teria noivado a mulher mais crente da cidade para fins de alavancar seu status profissional. Afinal, todos os seus colegas julgavam a competência de um engenheiro pela quantidade de fachadas que ele conseguia erguer.
E o noivado de Cornélius era a mais suntuosa fachada de todas.
Cap. 3 - Lavando o bidu no bidê
Cornélius encontrava-se, nesse espaço de tempo entre o nascimento e o noivado, caminhando a passos equidistantes entre o desejo e o celibato involuntário. Isso porque era óbvio que seria impossível comer Betilda (graças ao seu bom deus) até que ambos se estabilizassem financeiramente.
E nessa economia, para o alívio de Cornélius, isso ainda levaria muito tempo.
Porém, Cornélius, apesar de não ser tão medroso, como espalhava Betilda, era um menino levado. Quando nasceu, ao piscar já estava lavando o bidu sozinho no bidê, e quando piscou de novo já estava correndo com seus coleguinhas de escola brincando de manja esconde.
Foi numa dessas manja escondes que Cornélius manjou o esconde de um dos seus manjos. Estavam eles se escondendo debaixo da mesa da professora, numa sala de brinquedos de criança mais caótica que a terceira guerra mundial, quando Emanuel Prado, filho de nobres congressistas da cidade, que faziam campanhas contra educação de sexo nas escolas, ensinando consequentemente tudo para o filho pelas conversas que este ouvia atrás das paredes em casa, tocou-lhe o rosto das nádegas e apreciou seu higienizado bidu.
Cornélius nunca mais foi o mesmo.
Descobrira o que gostava em tenra idade, e desde então fez-se mais homem do que muitos homens. Precisava superar a vontade de ser gay com a vontade de ganhar, as quais mutuamente se refletem muitas vezes.
O brilho dos holofotes imaginários, a púrpura de seus sonhos mais aveludados, fez com que ele se tornasse um dos melhores alunos da escola e Emanuel Prado seu nêmesis.
Porém a briga dos dois é estória pra outro conto.
Após esses fatos da segunda piscadela, Cornélius piscou de novo e estava se formando na faculdade de engenharia. Já havia conhecido Betilda, alguns anos antes, e até se interessado pelos vários varões que a rodeavam, mas Betilda - oh, pobre menina apaixonada - bastou trocar um olhar com Cornélius para cair perdidamente de amores por aquele homem sem H.
cap. 4 - a maldição de Betilda
Betilda nunca se intimidou com a inteligência de nenhum dos colegas educados que cercavam Cornélius, e nem com a do próprio Cornélius. Era uma mulher falastrona, que pensava antes de acordar e depois não pensava mais antes de falar.
Recebia em seus sonhos o mais alto grau de instrução que uma pessoa humana poderia receber, porém por saber seu contexto de vida - igreja, comunidade, família - falava e se apresentava como seus pares. Uma retórica simples, mas humilde, e, por isso mesmo, impactante.
Cornélius, por outro lado, não tinha retórica nenhuma. Era um homem de números e rapidamente se enfadanhava com o mesmo tanto de interações sociais que Betilda precisava "só para aquecer a voz". E era tímido como uma máquina de lavar roupas - alguém precisava "abrir sua tampa" sempre que ele quisesse "lavar roupa".
Brigava pouco, mas sentia muito. E Betilda brigava muito (não com ele) e sentia muito também.
Não demorou muito tempo depois de formados para que Betilda decidisse entrar na política. E como vereadora mais nova de sua cidade, iria promover a construção de escolas, creches, hospitais e uma série de outras coisas que um vereador jamais poderia realizar a não ser em slides de campanha.
Não deu outra: num ano bissexto desses, Betilda ganhou as eleições.
Cornélius era quem fazia as estatísticas, o cálculo, media a altura do palanque de Betilda e do salto que ela deveria usar para falar com a imprensa.
Rapidamente eles se tornaram um casal poderoso. Poderoso a altura da família Prado, cuja candidatura para prefeitura da cidade descansou em Emanuel Prado, outrora nêmesis de Cornélius.
Mas isso é estória para outro conto.
No primeiro ano de mandato de Betilda, tudo correu bem. A imprensa ainda a adorava, pois ela sempre conseguia com muita lágrima nos olhos desconversar as indagações sobre a falta de creches, escolas e hospitais culpando os desvios abismais de dinheiro que a família Prado praticava ano após ano na política. E prometia, como vereadora, que não deixaria mais esse tipo de coisa passar, apesar de que toda semana... passava.
E assim foram trabalhando, Cornélius em suas obras, e Betilda em sua política.
Até que numa noite de lua cheia, após uma última coletiva de imprensa antes do início de novas campanhas eleitorais, recaiu sobre Betilda uma terrível maldição:
Betilda passou a trocar as palavras por números. E os números por palavras. E o R pelo L.
Correram pro psicanalista.
O casal tinha dinheiro, mas não havia fonoaudiólogo na cidade. E nem nutricionista. Nem fisioterapeuta. Nem otorrino, cardio, clínico geral, nada. Só existia na cidade três profissionais da saúde: pediatra, para cuidar dos futuros doidos, psicólogo, para tratar dos doidos crescidos e farmacêutico. Esse pra cuidar dos animaizinhos.
Então Betilda, após várias sessões, foi tentando descobrir a causa, a origem, do seu trauma que a fazia trocar palavras por números, números por palavras, e o R pelo L.
Cornélius, sentava ao seu lado no divã, traduzindo tudo quanto fosse possível de entender ao psicólogo. Já haviam acordado entre si que o um era "tu", que o dois era "nós", que o três era "vós" e nessa ordem conseguiram organizar os pronomes.
Mais a frente, o 942 era "melancia", 3.943 era "sábado" e o 666 era "dor de barriga".
Quando eles foram pela primeira vez ao psicanalista, eles só tiveram tempo de acordar essas palavras, então a história contada foi mais ou menos a seguinte:
Tudo começou num sábado, após uma dor de barriga que Betilda teve ao comer uma grande melancia. Ela olhou para Cornélius e disse
- um...um… - tentando dizer "tu tá bem?"
E Cornélius olhando meio torto, cabeça de lado, tentara entender o que se passava. Foi quando ela falou:
- dois, dois! - tentando dizer "acho que nós tá comendo melancia estragada!"
No que Cornélius respondeu:
- "Dois dois? Número 2? Então vai cagar, mulher"
E aí ela disse tlês…, combinado com outros vários números, que mais tarde Cornélius entendeu ter sido uma tentativa de rezar o pai nosso e uma ave maria.
Betilda, como se sob o efeito de uma hipnose misteriosa, encontrava-se amaldiçoada. E por isso, não conseguiria mais se reeleger ao cargo de vereadora da cidade.
Cap. 5 - O Oráculo de Dona Zélia
Pobres de espírito e sem dinheiro, mas ainda com suas sagacidades de praxe, Betilda e Cornélius foram parar no único profissional da cidade que não era considerado um profissional, mas resolvia muita coisa ainda assim.
A famosa leitora de salivas da rua 01. A rua 01, ao contrário do que o nome indica, era a rua mais afastada das zonas conurbadas da cidade (onde todos eram cornos e aglomerados). Dona Zélia, a leitora de saliva, afirmava com orgulho nunca ter sido corna pois um dia viu seu outrora marido (atual ex-marido) tomando seu típico cafezinho matinal preparado com amor por ela, sua outrora mulher.
Naquele dia, ao sentar-se na mesa para deleitar-se daquele mesmo café, notou um respingo molhado esquisito na camisa de botão daquele homem já muito desmoralizado. E viu que era baba. Seu marido, ele estava se babando. Seus pés estavam na terra, suas mãos na xícara, sua língua no café, mas seus pensamentos já não estavam nem no café nem na terra nem na xícara, e sim na jovem gariba da Rua 02 que abrira uma vendinha de Kisucos no ponto da esquina.
Como Dona Zélia sabia que a baba era de seu marido e não sua, e como ela fez a análise arquetípica daquela baba - desde o desejo reprimido à sua origem relacionada a acontecimentos e pessoas do mundo real - bem...
Era dom. E dom não se questiona, antes, acredita-se piamente.
Daí Dona Zélia abandonou o marido, os cafezinhos e voltou a morar perto do mato, vivendo de chás e muitas apostas desnecessárias. Jogo do bicho, bingo, sete erros, dominó - enquanto houvesse gente pra apostar com ela e salivar por dinheiro, Dona Zélia estava lá para roubar-lhes tudo.
E lá, naquele quase meio-de-mato da rua 01, com Dona Zélia estavam Betilda e Cornélius para descobrirem a origem da maldição que deixara Betilda disléxica e sem futuro na política...
Cornélius - faltou o narrador contar, novamente - também ficou desempregado após sair da empresa em que trabalhava e apostar tudo na sua mulher. Porém, quando não conseguiu o cargo comissionado que sua mulher lhe havia prometido quando ganhasse as eleições graças ao salto de 32cm que projetara especificamente para a última coletiva de imprensa antes da vitória, caiu numa prostração irrecuperável.
Dona Zélia então alinhou suas 13 xícaras de chá ao longo da mesa, cada uma com pires onde se liam nas bordas os nomes de Mateus, Marcos, João, Lucas... e vocês conhecem o resto. Sua 13ª xícara, carinhosamente chamada de Judas, era a última da mesa e encontrava-se ao lado esquerdo da Xícara-do-Mestre.
Então ela fez com que Betilda e Cornélius vendassem os olhos, embaralhou todas as xícaras ao longo da mesa, girou e girou Betilda e Cornélius até que ficassem tontos e começassem a babar naturalmente buscando por ajuda e equilíbrio.
Nesse transe transcendental, cada um aproximou-se da mesa na direção da Xícara que traria a resposta das suas angústias mais periclitantes. E assim aconteceu:
Cornélius girou, girou e bateu com as mãos de frente na xícara de Marcos e babou em cima da Xícara-do-Mestre, o que poderia ser interpretado com um sem fim de vagarosidades genéricas, como por exemplo: poderia ser ele o próximo profeta ou mais um engenheiro de orações em livros de bolso que saiu da depressão, voltou pro armário (que nunca saiu) e parou de comer carne aos sábados.
Já Betilda não. Muito longe da Xícara-do-Mestre, girou, girou, girou, bateu em Lucas, Mateus e João, derrubando suas xícaras e pires nos lençóis macios que Dona Zélia arrumou de antemão ao chão (já prevendo mais uma sessão de endemonhados) e parou, não com as mãos, e sim com a bica do dedo mindinho do pé em frente à Xícara de Judas. Babando em cima dela também.
O oráculo nunca falha. Nem dona Zélia.
Horrorizada, dona Zélia retirou a venda dos olhos de Betilda, enquanto Cornélius ainda se recuperava no canto da sala paralizado pela grandissíssima futura possibilidade de ser um profeta, e dona Zélia perguntou à Betilda:
Minha filha... você é neta da Velha Parteira?
Cap. 6 - A extinta Rua 0
Neta. da velha. Palteila. Puta melda, era só o que faltava. Claro que Betilda não falou nada disso, pois estava sem palavlas. Mas foi isso que pensou.
Quem, afinal, era essa tal de velha parteira?
Foi quando dona Zélia começou a descrevê-la que as memórias ressurgiram na cabeça de Betilda: Nariz de bruxa com pereba, trapos como roupas, facão na cintura, dentes podres, chapéu pontiagudo. "A mais prenha de todas as vacas".
É clalo. Eu sou a neta da velha palteila! É pol isso que ela me conhece! Então pol que estou amaldiçoada? Betilda pensou e pensou, enquanto Dona Zélia ainda explicava:
A Velha Parteira nasceu na rua 0. Eu nasci na rua 01, mudei-me daqui ao casar com aquele babão e voltei para cá depois do divórcio. A rua 0 não existia mais quando eu voltei, porque, segundo minha mãe de 149 anos, a prima de sua tia de segundo grau, a própria Velha Parteira, era dona da última casa do terreno antes do matagal.
Esse terreno, mais conhecido como Rua 0, era frequentado por gente de todos os tipos. Lá os homens tocavam as mais ensandecidas festas, regadas a pirulitos de sorvete e sorvetes de pirulito, dando total vazão aos seus desejos mais reprimidos (como ser chamado de "bom garoto", e não "zé", por suas esposas).
A Velha Parteira deu luz a muitos filhotes de vacas que criava, e quando os homens souberam que havia um quintal cheio de vacas, com mais vacas do que havia espaço de botar lá, foram correndo atrás do segredo da Velha.
Mas a Velha Parteira não quis partilhar segredo algum. Seus dons não eram meramente de adivinhação e oráculo, como os de Dona Zélia. A Velha Parteira era capaz de, pelo que diziam à época, voltar no tempo e predizer com exatidão o futuro.
Suas vacas eram todas criadas através de germinação. Ela fundia agricultura e agropecuária, representando uma ameaça para todos os latifundiários que frequentavam aquelas horripilantemente infantis festas.
Crianças levadas, ela dizia ao dar-lhes o último embalo da noite. E todos aqueles homens, poderosos em seus ternos e brilhantes os seus sapatos, dormiam.
Quando acordavam, a notícia era óbvia. Eles haviam se transformado em vacas.
E mugiam pedindo para serem resgatados pela Velha Parteira daquele pesadelo.
Desde então a Velha Parteira, arrependida de suas maldições, foi atrás daquela que poderia passar seus dons adiante. E essa pessoa era nada mais, nada menos que você Betilda. A neta da Velha Parteira.
MUUU.
Betilda, seu destino é descobrir como voltar ao passado, avisar aos homens para não frequentarem festas onde é possível ouvir sons de vacas mugindo ao longe e fazer sete filhos com seu marido, Cornélius.
Mas você se encontra amaldiçoada porque seu marido não pode lhe dar nenhum filho. Ele é um vea-... quero dizer, beato.
Betilda rolou no chão de desespero. Arrastando-se até o canto da sala onde se encontrava Cornélius em posição fetal, gritou para ele dizendo 01 01, 69 69, 07!! que quer dizer:
- ME PRENHE!!! ME PRENHE AGORA!!!"
E Cornélius, ouvindo aquela voz de mulher no cio, respondeu assustado:
Não posso... nem se eu quisesse. Sinto muito.
Cap. 7 - Cornélius, Betilda e a Nova Partição
CORNÉLIUS PORÉM ERA UM HOMEM DE VERDADE.
Não deixaria sua mulher, futura chefe, futura vereadora da cidade onde ergueu suas mais elaboradas fachadas na mão. E tratou de produzir, ali na sala de dona Zélia, com seu labor de engenheiro, um substrato salival capaz de emprenhar qualquer criatura fêmea.
Dona Zélia até se retirou do recinto, assustada. "Minha aposentadoria não vai cobrir isso", ela pensou, caso engravidasse por hosmose de tamanha energia viril que Cornélius começara a exalar do fundo de seu espírito.
Então Cornélius passou 40 dias e 40 noites misturando as drágeas das caixas de remédio nas xícaras com os temperos e as porosidades vitais das cascas de cupins que encontrava roendo os pés da mesa de dona Zélia, e com sua saliva.
Dona Zélia cogitou em chamar a polícia, antes de perceber que testemunhava o último ato de romantismo genuíno entre um homem e uma mulher em seus quase dois séculos de vida.
E ao final da 80ª noite, estava pronto. A gororoba-emprenhadora-de-fêmeas. Cornélius estava já cansado e pôs-se a dormir seu primeiro sono em quase três meses.
E Betilda bebeu da gororoba como se fosse água.
Voltou ao passado. Viu a Velha Parteira na Rua 0. Viu seus homens pastando no já extinto quintal de vacas. Correu atrás da Velha Parteira das profundezas do mar à beira da praia. E viu a si mesma recebendo a notícia que mudaria sua vida para sempre.
E decidiu que daria um basta nisso. Cornélius depositou toda sua energia vital na gororoba, e Betilda, por amor aquele homem, decidiu que aquele ato não seria em vão.
Betilda iria mudar o curso de todas as vacas que daria luz. E voltou para o momento de nascimento de sua vó, a Velha Parteira. Embalou-a em seus braços, antes que sua bisavó e mãe de Velha Parteira acordasse de um sono profundo, e disse:
Minha filha, você será a mais feliz de todas as vacas.
Mudando o curso da história, a mãe de Betilda tornou-se uma vereadora de sucesso, pois foi ensinada pela vó a como não comer capim e sim deglutir bons livros.
Betilda então foi educada em Orlando, Flórida. Fez um MBA em agronegócio, voltou para o Brasil e conheceu Cornélius, um renomado engenheiro casado com Emanuel Prado, então prefeito da cidade.
Betilda entrou como membra do conselho regional de agricultura da cidade e promoveu diversas políticas e decisões técnicas que aplacaram de vez a fome da população.
Nenhum homem chegou a pastar capim no mato depois de se encher de pirulitos no matagal da Rua 0 e ouvir mugidos misteriosos ao longe.
Todos, na verdade, trabalhavam com afinco para receber a boa sorte de Dona Zélia, da Rua 01, que lia suas salivas e conseguia adivinhar a altura e o número do sapato de suas futuras esposas.
Betilda sequer lembrava dessa história toda. Casou-se com um pobre professor de história da cidade, Seu Zé Dubão, que contava a lenda de uma Velha Parteira que morava numa rua que já não existe mais e amaldiçoava homens em crianças e depois em vacas para não ter que abrir mão do terreno.
Zé Dubão, o professor, era nêmesis de Cornélius, pois uma vez numa prova de redação da escola, Cornélius escreveu 23.944.182.410.239 por extenso e ganhou a simpatia da professora, dando-lhe uma maior nota que Zé.
Mas Betilda, apesar da aparente rivalidade entre os dois, olhava para Cornélius com um certo zelo.
E via que pôde ser a mais feliz de todas as vacas da cidade. Pois era vaca mesmo, era sagaz, e apesar de mugir em silêncio de vez em quando, nunca pastou à toa...
Exceto num dia que estavam ela e Cornélius à beira da praia comemorando mais uma parceria agricultural de sucesso feita com a prefeitura da cidade. Emanuel Prado divertia-se ao longe, na banquinha dos vendedores de coco bronzeados e musculosos.
Cornélius segurava um drink Moscow Mule numa das mãos e, com um isqueiro na outra, acendeu um cigarro sujo em sua boca achado perdido no meio da areia.
Engraçado você ser tão zeloso e calculista com tudo, mas acender seu cigarro com isso - disse Betilda, tentando provocar uma reação em seu amigo. Eles riram, Cornélius ofereceu-lhe um trago. Mas Betilda não poderia. Estava grávida.
E por um momento, um lapso de segundo, Cornélius olhou para Betilda e, talvez não muito sóbrio das ideias, admirou suas belas coxas, os seios quase desnudos sobrando naquela tanga de praia que a cobria. E pensou em voz alta:
Não parece que eu namorei com você e nem que casamos... e apesar de eu ser gay, e apesar de você ser crente, e apesar de nós não termos absolutamente nada em comum, eu acho que…
... tudo poderia ter dado certo. Se eu tivesse apenas tentado.
E Cornélius cambaleantemente se levanta para ir atrás de outro Moscow Mule. Deixando Betilda e o filho na beira da praia, admirando o sol se pôr.
Filho esse, aliás, que Cornélius era o pai. E não sabia.
- Fim