Diálogo
O vigário, vestido numa ornamentada batina, acendia as luzes da igreja todos os dias, no mesmo horário.
Certa noite, o sol deu a entender que não ia mais voltar.
A paróquia toda já havia ido embora e não sobrou alma alguma para a próxima liturgia.
Naquele escuro, o vigário se viu no altar sozinho. "Então não há por que acender as luzes", pensou. Mas prosseguiu à leitura assim mesmo, apenas sob a claridade das velas que incandesciam o presbitério.
Ao término da solitária leitura testamental, ele já ia pular a homilia, quando percebeu, no folhear de páginas de seu sagrado livro, alguém sentado e atenciosamente escutando a palavra de Cristo... na última fileira da nave.
Todas as luzes estavam apagadas, e não havia ninguém iluminado sentado às cadeiras.
Apesar disso, o vigário percebeu este diabo, que vestia uma camisa de botão florida, ornada com uma gravata borboleta azul, da mesma cor de suas alpargatas. Seus cabelos, belos e ondulados, caíam frondosamente para a direita, e o tom de seus olhos era mais quente que o fogo das velas acesas no sacrário.
O rosto jovem escondia uma rústica beleza, que harmonizava com arquitetura do local, como se a este pertencesse.
De fronte à sua presença, o vigário ordeiramente prosseguiu para o recital do credo, tendo apenas que ignorar o fato de não estar mais sozinho...
quando foi interrompido.
O diabo tinha dúvidas.
E não encontrou deus para perguntar.
Percebendo-se nesta delicada situação, o vigário lhe concedeu a palavra, sem muito pestanejar. Queria agora acender as luzes, porém ficou receoso de afastar o único fiel daquela noite.
Num lento e distante diálogo os dois tiveram momentos de concordância e discordância.
O diabo anotava tudo, todas as bençãos e todos os conselhos que o vigário deixava escapar. E quanto a palavra de deus, perguntava inúmeras vezes ao vigário:
"E o que vossa reverência mudaria?"
E o vigário, acalentado por tamanho interesse do fiel, permitia-se julgar e opinar, para além das sagradas escrituras. Já a visão e a fala de um homem sobre a obra divina... agraciava os ouvidos e olhos atentos do querubim.
Passaram-se sete luas, mas nenhum sol até a conversa acabar.
Ao final do sétimo dia, finalmente insurgindo-se de um longo refúgio, o sol despontava no horizonte para retomar a guarda da terra. As janelas voltavam a iluminar com seus cristais coloridos cada canto da igreja.
Era dia.
O diabo então levantou e agradeceu a disposição do vigário. Dentre os vários metros que os separavam, desde a última fileira ao presbitério, o anjo estendeu a mão e lhe fez uma última pergunta:
"Você virá comigo?"
O vigário, antes congelado no tempo, volta a perceber o seu próprio corpo e calor no espaço.
Há muitos anos a idade o torturava, e naquele momento ele voltou a sentir o peso de cada junta, cada nervo, ossos e até mesmo os finos fios de cabelo que estavam decaindo e apodrecendo de sua pobre alma.
E não imaginava que seria, assim, tão logo convocado. Estava feliz.
O Vigário pendura então o colarinho branco sobre o sacrário e humildemente desce as escadas do altar.
Ao segurarem as mãos,
seguiram juntos para o novo mundo que o diabo acabara de criar.
[21/05/2019]
Passagem
Eu queria ver o mundo florescer,
então joguei uma semente no mundo.
Deus viu e ficou decepcionado...
Disse que a terra se encarregaria de plantar as sementes.
Eu olhei para a terra,
e vi que ela estava seca!
Então peguei as lágrimas que deus me provocou...
e assim reguei a terra.
Deus novamente viu, e já muito irado,
me falou
a água se encarregará de regar a terra.
Então, enquanto enxugava meus olhos
vi que a água estava parada,
a terra continuava seca,
e as sementes continuavam penduradas, dentro dos frutos, no topo das árvores.
Eu não entendi nada.
Porque meu sofrimento parecia não passar,
e nesse ritmo o mundo talvez nunca fosse florescer.
Até que deus, percebendo minha aflição, disse:
O mundo se encarregará de florescer
e com ele estarão as mais belas flores.
A terra trará de volta a água ao seu curso,
porque essa é a natureza da água para com a terra.
Mas eu nunca disse que você faria parte dessa natureza.
Você não pertence a este mundo, e jamais poderá mudá-lo.
A sua natureza é outra, distante daqui.
Sua passagem é só de ida, para longe,
num caminho não de ses, mas de quandos.
Já eu não sou seu pai,
tampouco seu filho.
Não sou alguém para você
além da sua própria existência.
Nós não pertencemos a este mundo.
E assim Deus seguiu na minha frente,
comendo alegremente frutos caídos dos pomares,
como uma criança que nunca tinha visto a luz do sol.
[15/03/2021]
Anormais
Quando criança, não demorou muito pra perceber que eu tinha três olhos.
Dois na frente, como qualquer ser humano teria, e outro, um pouco acima da nuca, escondido debaixo dos meus cabelos. Por conta disso, sempre os deixei soltos. Não gostaria que descobrissem. Que eu me via. Porque…
Esse olho não veio comigo de nascença, mas foi-me posto em tenra idade. Com ele eu observo os passos dos caminhos que eu deixei para trás.
Um olho voltado para dentro do corpo - os médicos dizem que é algo inútil!
Mas com ele eu consigo ver tudo que há dentro de mim... ainda que esteja muito perto, e a vista fique embaçada.
Um dia eu conheci esse homem.
Ele tinha o coração para fora do corpo, pendurado por finas veias encobertas de pele. Ele tinha que carregar o coração num recipiente e cuidar para que quando sentasse, deitasse, ou caminhasse, o coração não sofresse o risco de ser machucado pelo mundo exterior.
Um coração é para estar dentro do corpo. E o dele não, estava fora. Mas essa anormalidade se tornou quase um superpoder. O homem se tornou tão gentil quanto era evidente sua vulnerabilidade física. E eu, enquanto olhava de perto, preocupada com tudo o que estava de ruim dentro de mim, não o percebi se aproximar dos meus cabelos.
Por isso nunca achei que alguém fosse gostar. De mim, do meu terceiro olho, da minha ânsia paralítica em tentar piscar, por um milésimo de segundo, para os meus órgãos internos e simplesmente não conseguir. Esquecer que estou me observando. Isso para mim é impossível.
Mas para esse homem não. Ele aproximou-se de mim e aconchegou-se aos meus braços como se eu pudesse tocar seu coração. E de repente, a visão dos meus três olhos já não importava mais.
Com ele eu poderia fechar meus olhos. Ouvir seus batimentos.
E dormir.
[28/02/2021 - hoje]
A vibe dos textos de hoje foi… diferente. Como o mês de Abril, em que quando não tá chovendo pesado, simplesmente tá o dia mais lindo da face da terra, casual e repentino, como todas as boas surpresas da vida são…
Obrigado por lerem até aqui meus queridos e queridas. Até semana que vem :)