A carência deu meia volta no carro
e começou a dirigir na minha direção com tudo.
Naquele momento eu pensei que, bem,
"é o meu fim".
Só que aí o amor próprio apareceu na minha frente e jogou o carro da carência pra longe, num ato extravagantemente heróico.
O carro rodopiou e bateu no muro ao meu lado, estraçalhando tudo.
Eis que a carência sai do carro e ambos começam a brigar intensamente, até que o saudosismo, que ouviu a confusão, chega para dar um basta naquilo.
Mas acabou que ele foi influenciado pelo calor do momento...
e os três iniciaram uma porradaria atordoante.
Enquanto isso eu me vi deitado no meio da rua, e me perguntava
como diabos eu deixei isso acontecer?
E também
como eu iria fazer pra que essas sinapses parassem de fritar o meu cérebro,
jorrando hormônios indesejáveis no meu organismo.
Naquele momento eu estava com as duas mãos na cabeça, quase chorando em posição fetal,
até que a razão, que passava por lá, longe dali, se aproximou e me perguntou
"Por que você não vai lá intervir?"
e eu lembro de ter apenas balbuciado poucas palavras de repulsa, dizendo
- eu não quero
A razão continua
"Se você não quer, por que vem ignorando minhas mensagens?"
E eu falei, agonizando
- Porque suas mensagens doem.
E a razão, estoica, novamente me retruca
"As minhas mensagens doem porque elas simplesmente falam da lógica dos fatos, pra você analisar e prever a sua ordinária vida com base neles. Mas não necessariamente doem porque elas estão sempre certas... você deve lembrar de escutar também
a intuição."
Ahhh, claro.
Intuição, de quem ela fala, é a filha mais velha da razão. Ela sempre foi uma das minhas melhores amigas e nos aproximamos ainda nos tempos de escola, quando eu me esforçava pra aprender as coisas que a razão queria ensinar.
Pelo fato de eu pouco compreender a linguagem da mãe, a intuição me passava várias colas em épocas de prova e me dava dicas do que a razão gostava de ouvir em sala.
Desse jeito e com a ajuda da intuição, eu passei na escola sem saber quase nada do que caía nas provas.
Mas apesar de que a intuição estivesse sempre lá pra me ajudar, às vezes eu não entendia os sinais dela. Ela falava muito rápido e eu pegava só o essencial para passar. Eu sinto que ela queria se aproximar mais de mim, mas eu nunca dei valor o suficiente para além de uma simples amizade.
A intuição cresceu e se casou com a coragem. Eu jamais teria imaginado as duas juntas, até porque foi um relacionamento muito rápido e isolado de todos os outros.
Nesse meio tempo eu namorei com a criatividade, que também me fez aprender várias coisas...
não de um jeito sutil e doce como a intuição,
mas sim quebrando meus ossos e me fazendo perder contato com a razão várias vezes.
A criatividade me fazia passar por coisas
que a intuição diria "melhor não fazer".
E essa era a grande graça de acompanhá-la.
Talvez um dia as duas se conhecessem...
tornariam-se grandes amigas.
Mas o meu relacionamento com a criatividade durou pouco porque uma hora eu entendi que não podia apenas segui-la pra cima e para baixo, e perder o contato que eu tinha com o mundo real.
Depois dessa época, eu flertei várias vezes com a consciência. O fato de eu pô-la no topo de um pedestal talvez tenha dificultado qualquer possível relação com ela.
O engraçado é que quando ela conversava comigo, sempre de maneira breve, mas muito atenciosa, eu a sentia como um reflexo de mim.
Nunca tivemos nada, mas é alguém que está sempre ali...
se um dia eu ousar chegar mais perto.
Agora que eu lembrei da situação caótica que me fez estar jogado aqui na rua, o saudosismo cansou de ser trouxa e seguiu o mesmo caminho da razão, que o ensinara a nunca comprar a briga dos outros.
A carência se viu esgotada, sem forças e pediu desculpas,
apesar de que o amor próprio já havia a perdoado.
Todos muito lindos seguiram fazendo as pazes, mas só eu voltei pra casa sozinho e fodido.
Eu ligo a TV,
deito no sofá,
e vejo a inconsciência juntando as minhas ideias e jogando elas pra debaixo do tapete de novo.
Eu tento impedi-la, mas o sono deitou em mim e dormiu. Ele é muito pesado pra eu simplesmente conseguir levantar daqui.
A inconsciência passa várias noites aqui, e vai embora sempre pela manhã.
Eu sempre pergunto pra ela o que aconteceu na noite anterior, mas raramente ela me lembra de alguma coisa.
Até hoje eu não sei o que temos direito.
O sono me acorda e eu sirvo a ração dele. Ele come e vai brincar com a impulsividade. Enquanto eles brincam juntos, eu não tenho que me preocupar com nenhum dos dois.
Eu engulo meu café enquanto o sono está distraído, pego as chaves do carro e abro a porta de casa para ir trabalhar...
Eis que a carência dá meia volta no carro,
e começa a dirigir na minha direção com tudo.
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Mauro Andrade,
Set, 10, 2019
Eis aqui a republicação de um antigo texto que eu postei nos stories do Instagram há muito tempo atrás. Nessa época eu tinha vergonha de publicar as coisas em qualquer lugar que elas durassem mais de 24 horas. Hoje em dia eu penso que se qualquer coisa durar mais de 24 horas na cabeça de alguém, já é um grande feito.
E esse texto só foi republicado hoje porque ele durou na cabeça de alguém… por anos. Alguém que numa conversa me lembrou de sua existência.
Grandes pequenos feitos.
Até semana que vem!