|Era num Sábado de Lázaro.
Seu Aldair viera de longe buscar o gado que lhe havia sido roubado por Rosária.
Entrando naquela fazenda, de pá na mão e inchada nos pés, ele estava pronto para cometer um crime.
Quando não, chega Rosária gritando do fundo do curral com sua mosquete empunhada à altura da cabeça:
- VOCÊ VAI MORRER HOMEM! VOCÊ VAI MORRER E NÃO É POUCO!! EU VOU LHE MATAR 64 VEZES ANTES DE VOCÊ CHEGAR A TRÊS ARES DE MIM!!!
- gritava a doce sexagenária de um metro e 48, armada dos pés a cabeça com sua bata autocosturada.
- É um sentimento difícil, minha doce Rosária.
Vem de dentro o apego pelo meu gado e eu sei que deles você está cuidando muito bem. É sobre mim que eu vim buscar. Você roubou tudo de mim.
Então seu Aldair levantou sua pá… e jogou-a na frente de Rosária. Agora desarmado, ele se ajoelha e pede para que sua botina seja poupada. Não existem sentimentos reprimidos pra um homem que já foi preso e torturado.
Seu Aldair sabe que qualquer hora é hora de falar sobre eles.
Naquele momento, Rosária poderia queimar Seu Aldair, cremá-lo, enterrá-lo, jogar seus restos e sentimentos às galinhas antes mesmo do próximo sol daquele dia raiar.
No entanto, Rosária crava a arma no chão.
Se aproxima do pobre, pobre Aldair, com seus um metro e dez ajoelhado, e lhe pede perdão.
Ao gado que os separava entre a paixão e a revolta restou observar toda aquela cena estarrecidos:
- Os humanos... são loucos.
- ...
- Mas quem você mataria?
- Aquele baixinho. Duas patadas, era meu.
- E você Mhmmhmm?
- Depende. Um dos dois sabe usar arma. O primeiro atira com a cabeça, o outro só com o coração.
Naquela sabedoria toda, pastavam.
Rosária dormiu sem sua mosquete naquela noite.
Aldair enterrou sua pá. E, depois de muito tempo, foi dormir armado...
Tudo parecia ir bem, e seus pés pararam de inchar. Achava ele que era algum bicho geográfico, mas na verdade tratava-se apenas da dureza de andar, andar e não ter onde cair morto. Longe de casa, longe de Rosária.
Mas agora, ele estava de volta.
Tudo parecia ir bem. Bem demais.
Mas naquela noite, o gado ficou acordado.
|Existe um breve momento da madrugada, quando a lua já caiu e o sol ainda está subindo, entre o covil do mato e as estrelas do céu, em que se abre uma passagem.
Rezavam os mais velhos, agora então mais velhos ainda, que a passagem é um clarão escuro, no qual os olhos humanos se cegam mesmo podendo enxergar, e outros olhos descem à terra para vigiar o translado dos seres recém assassinados pelos próprios pais.
Seus espíritos, ainda que inocentes, não caminham diretamente pra cima, rumo ao paraíso, pois ficariam de cara com figuras paternas muito semelhantes às de seus algozes. Então, numa passagem reta que atravessa o horizonte, eles são remanejados noutras vidas, com outro corpo, e outra tímida consciência.
Naquela noite, o gado por acaso viu a passagem. E nela atravessou, um-a-um, no entremundos.
Seu Aldair acorda e vê a fazenda sozinha.
Rosária dorme pesado.
Ele desce as escadas e vê tudo aquilo de horizonte sem pernas entre o céu.
O gado fugiu... - pensou ele.
Mas não tinha problema porque na verdade, verdade mesmo, Seu Aldair tinha vindo atrás de quem lhe roubou Rosária. E esse quem ele sabia que logo haveria de voltar.
É quando Seu Januário chega da cidade numa 4x4 barrenta.
ROSÁRIA CADÊ O GADO??
- gritou Seu Januário.
Rosária acorda.
Seu Aldair já tinha descido.
Era tarde.
Mas estava de manhã.
Talvez se ela fosse rápida conseguiria acertar um tiro no primeiro homem que cruzasse o pontilhame de sua mira.
Mas como eu disse, era tarde.
Seu Aldair estava escorado logo em cima da pick-up com um rombo de queima-roupa na perna esquerda.
Pelo menos não acertou a botina, pensou ele.
Seu Januário estava largado no chão agonizando em sua frente com apenas nove dedos nos pés...
|Era Domingo de Ramos.
Rosária estava numa fria. E o sol queimava seu curral agora vazio, com apenas aqueles dois homens trambiqueiros brigando de patas quebradas.
Com sua mosquete na mão, ela gritou:
- VOCÊS SE RESOLVAM AÍ! EU QUERO SABER ONDE TÁ MEU GADO!
- ROSÁRIA MAS EU ACABEI DE CHEGAR - respondeu Seu Januário, ainda pensando no dedo arrancado aos dentes por Seu Aldair.
- R-rosária... o gado foi na passa… g-gem. É-é tarde. Todos morreram aqui. E noutro lado estão t-todos vivos, todos vi-vos... - engasgava Seu Aldair, com alguns restos de pele entre os dentes.
Rosária se desabou de chorar.
Seu Januário não entendeu nada.
O homem era mais burro que uma porta e provavelmente estava cultivando alzheimer. Mas gostava de Rosária, queria vê-la prosperar.
Só que agora a fazenda tripartite tinha outros planos.
De repente abriu-se um buraco no chão, e até as plantações de milho foram vencidas. As carroças foram sugadas do zênite de Rosária até o centro da terra.
Naquele momento poderiam vir os cavaleiros do apocalipse, os garimpeiros e os pleiadianos, nada iria superar o absurdo que era a fazenda estar engolindo a si mesma.
Cansado do drama, um lote de terra resolveu virtualizar-se animicamente numa grande depressão.
Então Seu Aldair entendeu. Homem inteligente e pouco verbal que era, não lamentou ser engolido pelo buraco de Rosária. Ele sabia que aquela altura já estava selado seu destino.
Os dias escureceram. E Seu Januário estava lá em cima, perto da borda, cambaleantemente procurando seu décimo dedo.
Essa história toda pra contar que, de fato, nenhum homem sabe superar a bagunça com qual a vida lhe presenteou uma mulher tal como Rosária. 64 anos, 64 cabeças de gado e nenhuma cabeça de vento.
Porém, cedo ou tarde a sede descontrolada de Seu Aldair reviveria os pormenores da sua antiga vida pândega, levando-o a se reembalar nos cantos de outras sereias.
E o peso da idade avançava sobre suas magras costelas, entortando-lhe. Assim o pobre Aldair percebeu que sua única propriedade foi um não-sei-quê inexistente entre Rosária e a terra. Seu gado havia sido remanejado e suas belas amantes desarrochadas.
Aldair resolveu então, como a fazenda, enterrar-se no amor pra sempre. E trazer as sementes do seu próprio corpo como generosas árvores, que cresciam apenas para que a pick-up do Seu Januário estacionasse debaixo da sombra. Apenas pros passarinhos voltarem a comer e se bicarem, jogando frutos no chão, atraindo bichos e mais bichos.
Pouco a pouco a fazenda foi se desenterrando.
Quando Seu Aldair finalmente saiu do grande buraco, estava lá o gado. Remanejado. Contemplou tudo aquilo… e se foi.
Viu a passagem e passou por debaixo.
Viu Seu Januário de longe e lhe acenou um boa tarde.
Nem tudo é sobre ressurreição, pensou.
E assim, desenterrado como um morto-vivo, voltou a andar matagal adentro, nonde Rosária só plantou saudades.
Texto escrito originalmente em 27/03/2021.