Eu sempre me considerei uma pessoa bastante forte (psicologicamente falando), do tipo que demora pra quebrar em situações adversas. Meus amigos da escola me diriam o contrário, mas não ligo pra eles. A imagem que eu tenho dos meus piores problemas já resolvidos é o que importa.
Esse fim de semana, porém, aconteceu um acidente.
Eu furei minha mão quando fui tentar aparar um copo de vidro que eu havia derrubado sem querer no chão, ele se espatifou antes e a ponta que ficou para cima foi exatamente onde minha mão viajou para tentar pegar o copo.
Era de madrugada, minha namorada acordou pelo barulho num salto e foi ver o que tinha acontecido. Me cortei, eu falei. Mas não tá doendo. Vou lavar.
E enquanto eu lavava, vi aquele sangue todo saindo na pia, não parava de sair. Se eu fechasse a torneira por um segundo lá estava minha mão toda encharcada de vermelho de novo.
Toda vez que eu tiro sangue, eu fico meio leso.
Dessa vez, não foi diferente. E eu comecei a ficar meio leso. E desisti de lavar a mão e comecei a andar pra pegar meu celular e pesquisar "o que fazer quando cortar a mão com vidro".
Essa geração não sabe fazer nada, eles dizem.
E fui ficando como se fosse bêbado. Falei pra ela - chama a ambulância (meus amigos da escola já me ouviram falar essa). Acho que eu vou morrer - eu pensei sozinho (meus amigos da escola também já me ouviram pensar essa). E quando minha visão foi ficando cada vez mais turva, a pupila dilatada como se eu estivesse num sonho, vendo com meus próprios olhos a distância da minha consciência, eu sentei no chão e percebi que estava realmente sozinho.
Não literalmente sozinho, porque Ela estava lá, me ajudando. Mas "sozinho" no sentido de que eu realmente iria desmaiar sozinho, passar por aquilo sozinho.
Dormir e desmaiar é como morrer. Nesse caso eu não desmaiei. A tela ficou preta apenas por alguns milissegundos e logo eu consegui me levantar de volta. Sentei na cama. Ainda respirando fundo. Percebi que nenhum pranayama do mundo ajuda nesses momentos. E percebi algo também, deveras mais interessante:
Eu ainda não sei morrer.
O que realmente importa
Todas as religiões do mundo se transvestem de adoração a Deus ou aos Deuses do seu panteão... Mas o que uma religião realmente ensina (ou deveria ensinar) é como você deve morrer.
Superficialmente falando, para o Cristianismo, você precisa se arrepender dos seus pecados. Pro budismo, purificar seu carma negativo. Pra algumas tribos egípcias, você deveria evitar morrer "a segunda morte" (quando sua alma fica presa junto ao cadáver do seu corpo e perece sem achar o caminho do paraíso).
E naquele momento quando eu achei, por um breve momento, que iria sangrar até perder a consciência e morrer, e que não ia dar tempo de ambulância nenhuma chegar, eu percebi o seguinte:
Eu ainda não sei morrer.
Não deu tempo de aprender. Não deu tempo de fazer tudo que eu queria fazer. E que talvez eu morresse a segunda morte, não iria conseguir me desapegar desse mundo nem de seus pecados.
Pra quem acha que morrer é como dormir sem sonhar - nada acontece e nossa consciência se dissipa na terra - tente imaginar essa sensação, só que tendo a fé de que algo deveria acontecer ao invés disso. Agora tente imaginar a sensação de pavor ao perceber que na verdade é exatamente isso que estava acontecendo - sua consciência adormecendo e se dissipando na terra, no nada.
Passar por isso me fez perceber o que realmente importa.
Numa fazenda, haviam três cavalos.
O primeiro deles galopava logo ao ouvir a voz do boiadeiro, e o chicote balançando em suas mãos, falando "eeeia". O segundo, mesmo ouvindo o boiadeiro e percebendo o chicote em suas mãos, nem se mexia. Mas aí o boiadeiro lhe dava apenas uma chicotada e este logo galopava.
Já o terceiro, não se mexia nem com o "eeeia" do boiadeiro, e nem com a primeira chicotada. Se o primeiro era um ótimo cavalo, e o segundo um bom cavalo, esse terceiro era um cavalo ruim.
Suas costas precisavam ser chicoteadas de novo e de novo pelo boiadeiro para que saísse do lugar onde estava.
~ Alguma parábola que eu li em algum lugar e estou recontando agora de cabeça, com as minhas próprias palavras…
Sabe, existem pessoas que, apenas quando passam por um grande acidente, ou por uma NDE (experiência de quase-morte) ou sofrem um trauma pesado na vida, param pra perceber as coisas que realmente importam. Eu talvez seja uma dessas pessoas. Mas nesse dia do copo de vidro, acho que eu fui um bom cavalo. Porque eu percebi logo o que realmente importava naquele dia.
Estar vivo. Ter alguém se preocupando comigo e cuidando de mim. Ter tido saúde pro meu sangue também estar saudável e logo terem se formado coágulos para estancar o corte. E todo o resto de coisas maravilhosas que eu tinha vivido em um só dia, mas até então não havia percebido.
Bastou uma simples reação vasovagal pra me fazer perceber tudo isso.
E quando eu retomei plenamente os sentidos, eu percebi que nunca há tempo.
Nunca há tempo pra fazer aquilo que achamos que queremos fazer. Pense na academia e na dieta, na rotina perfeita que você anota e não segue, e nas pessoas que você diz que vai ver e não acaba não vendo porque problemas apareceram, compromissos foram marcados e a sua família precisa de você etc etc etc.
Fazemos, o tempo inteiro, aquilo que realmente queremos. Quando nos convencemos de que queremos fazer algo que já não estamos fazendo, de repente falta tempo.
A questão é que nunca há tempo. O tempo é uma invenção da cabeça do homem. Realmente quando os budistas e os pirahãs e os ateus falam que só existe o aqui e agora, eles têm alguma razão.
É óbvio que o passado existe através das nossas memórias e o futuro através de nossos planos. A questão é que ambos se originam do presente, conosco pensando e pensando até encontrarmos algo que realmente importa.
Quando o futuro se conecta harmonicamente ao presente, passamos a fazer as coisas conforme os nossos planos. E o tempo se dobra à nossa vontade.
A questão é que, como não podemos planejar o futuro inteiro em detalhes (embora algumas pessoas se esforcem pra conseguir isso), e não podemos ficar rememorando o passado até que o passado nos esqueça, somos obrigados a viver a maior parte desse "tempo" no presente.
O presente é um fio de pontas soltas. É fácil perdê-lo ou confundi-lo com outro fio da meada.
E daí, o fato de eu estar escrevendo esse texto faltando uma hora pra minha deadline semanal acabar é a maior prova de que nunca há tempo.
Porque eu tive uma semana inteira pra escrever, eu estou escrevendo ele em apenas uma hora.
Não é que eu precisei realmente dessa semana toda. É porque não houve tempo. Estava muito ocupado tentando não morrer, tentando continuar saudável e fazendo coisas preciosíssimas com o meu tempo. Até que ele acabou. E cá estamos.
Dito isso, acho que é bom eu aprender a morrer.
Antes que seja tarde demais.
Viva bem,
- Mauro
Pessoal, eu não esqueci da história da Caverna e prometo retomá-la muito em breve nas próximas semanas. Até semana que vem!