A Visita / Pássaro Engraçado / Tradução de 'Hikikomori: Salt Constellations'
História-Poema #18 e Tradução #1
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A Visita
Comi um semáforo antes de entrar naquela rua
à esquina de uma casa abandonada.
Seus muros fechavam os quatro cantos de um local esquecido
pelas pessoas que ali moravam.
Os cacos de vidro rangiam entre os meus dentes,
os pedaços de plástico já chegavam ao meu estômago.
Eu precisava daquela luz de rua,
para entrar na casa abandonada.
Ao entrar lá me deparei com uma senhorita jovem.
Ela me encarou ao me ver chegar,
como se nunca tivesse visto outra coisa além de si mesma.
Voei para os quartos e tudo vasculhei,
não conseguindo encontrar resquício algum das suas memórias.
Era tarde e eu não havia comido nada vivo ainda,
voltei para a sala de estar, onde a jovem estava...
e agora ela não me via mais.
Me alimentei da sombra que seus cômodos despojava
e alcei minhas asas para longe daquela casa abandonada.
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Pássaro Engraçado
Em tímida plainagem arrevoando à volta,
vejo um pássaro pousando em meu telhado.
Calado e bicudo, me olhando de lado -
eu, um pedaço de pau-a-pique morando em natureza morta.
Como se me achasse engraçada, sua cabeça começava a requebrar,
sem nunca perder de vista a mim o seu lívido olhar.
E nesses instantes secundais em que nos encaramos, um ao outro,
deixei as chaves da minha casa, já aberta, na fechadura.
E percebi, pelo canto do olho, que alguém nela entrou.
Era uma casa torta, e a vida nela às vezes se fazia escura.
Desatendendo à atenção que o pássaro me roubara,
torno a entrar em casa, a caminho da sala.
Vejo nela uma mulher sentada, sem falar nada,
usando meu sofá, de cara fechada. E grito:
- Ei ei ei estranha, olhe pra mim!
Quem é você e o que faz aqui??
Plácida e desatenta, ela não me torna o olhar,
olhando fixamente para a TV da sala-de-estar…
… desligada.
Espero um segundo, tomo coragem,
passo a passo me aproximo para confrontá-la.
Vejo sua cara de paisagem
e a revolta me sobe até o talo!
Mas tento tocá-la e um frio gélido encontra meus dedos.
Em prantos percebo do que se trata o meu medo,
havia eu vivido aqui e morrido em segredo,
e meu corpo jaz agora no sofá da escura sala desta torta residência.
E aquele pássaro espera eu dar meia-volta,
que eu vá lá pra fora,
que eu tome ciência
que a essa hora eu já estava morta
e preciso fazer meu desterro.
‘Hikikomori: Constelações de sal’ (Jennifer S. Cheng) - tradução livre
‘Hikikomori’: Uma constelação de corpos, sozinhos em suas casas, que quando conectados por pontos ou linhas pontilhadas, formam um vasto céu noturno, piscando acesos e apagados, acesos e apagados.
[…]
Literalmente, o termo significa “afastando-se” ou “ser confinado”. Uma vez um garoto se fechou em seu quarto durante quatro anos, e quando finalmente emergiu dali, ele havia esquecido de como se fala com os outros, de como levar uma conversa. Noutro caso, uma garota em seus 20 e poucos anos falhou em conseguir o trabalho que havia se planejado para ter, e enquanto seu corpo começava a se intimidar e diminuir, crescia mais e mais seu medo de sair da casa dos pais.
“Hismael1 não explicou… por que seria tão tarde para começar uma carreira aos 26 anos. Ele apenas disse que não iria sair de casa ‘até saber exatamente o que fazer’. Era o típico pensamento de um hikikomori: Melhor permanecer dentro do quarto do que arriscar aventurar-se no mundo e falhar.”
Eles têm medo de não suprir as expectativas do mundo. E cambaleiam pelo caminho que a sociedade lhes dispôs, demonstrando um pequeno espaço de funcionalidade. A aversão é mais do que um desgosto, é um buraco, sentido como se fosse um estranho intimidador.
Eles riem quando estão felizes, quando ocasionalmente adentram no mundo. Eles podem ter dias, até mesmo semanas, de funcionalidade normal.
“Os hikikomori sabem aquilo que consideram intangível, mas não conseguem descrevê-lo.”
Ficar em casa se tornou uma obsessão, um ritual. Eu contava o número de dias entre saídas ao ar-livre ou interações sociais. Teve um mês em que eu pensei que nosso apartamento estava infestado de carrapatos, e com isso, inventei algumas regras: 1. A cama é o único lugar seguro. Nada que tenha estado lá fora encosta na cama. 2. Ficar no cobertor o tanto quanto eu puder, mesmo com fome ou tendo que prender o xixi. 3. Não desviar de dois caminhos: da cama pro banheiro, e da cama pra cozinha. 4. Tomar banho e voar de volta para a cama, subindo uma perna de cada vez enquanto eu inspeciono meus braços e pernas por carrapatos.
Se eu tivesse de confessar um segredo, seria o de que, depois de ficar enrolada ali como um feto, eu pensava que iria acumular energia nas minhas juntas, como eletricidade, ou como canos quase para estourar, e então eu não poderia mais suportar essa situação, aí eu começaria a me debater loucamente até que poeira e penas de travesseiro se acumulassem pela cama.
Fragmentos de diários como “o desejo de viver uma vida normal, mas a incapacidade de fazer isso”; “medrosa demais e marcada demais para se aventurar pelo mundo e além…”
Palavras como navegação, como se estivesse sempre presa procurando por mais regras, sempre imaginando como orientações claras e objetivas poderiam estar dispostas num manual.
No fim das contas, eu não confiava mais em mim mesma para falar com o carteiro, com o motorista do ônibus, com a moça da loja de departamento com seu broche perfeitamente ajustado e seu alto porte.
As chances de falhar eram incontáveis.
Autora: Jennifer S. Cheng, via Literary Hub
Para citação (deve tá na ABNT, eu acho):
S. Cheng. Jennifer. Hikikomori: Salt Constellations. Literary Hub, 2015. Disponível em: <https://lithub.com/hikikomori-salt-constellations/>. Acesso em: 04 de junho de 2024.
N.T.: Nome brasileiro adaptado de “Hiroshi”, do texto original em inglês. Poderia ter posto Humberto ou Hemerson, ou deixado como estava, mas esse pareceu mais eufônico para mim.
Obrigado por ler até aqui! De vez em quando as pessoas me mandam mensagem no zap falando que eu posto muita coisa em inglês e elas não conseguem ler, então hoje decidi juntar dois poemas meus, feitos em dias diferentes mas com temas semelhantes, a um conceito que eu acho bastante interessante, dos hikikomori.
O texto da Jennifer foi o único que juntava arte com relato e ciência, e é belíssimo.
Se eu tivesse tempo eu traduziria ele inteiro pra cá, mas acho que ninguém leria e eu talvez não fizesse jus a voz da autora. Mas recomendo fortemente a leitura.
A todos os hikikomori por aí, meus votos de compaixão por vocês. O mundo pode ser intimidador pra caramba, mas no fundo da alma humana há uma essência irrepreensível, que não sente medo e nem solidão. Para alcançar essa essência, basta começar a procurar. Um dia de cada vez.
Até semana que vem!
— Mauro
BOA!